quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Aula 1: Introdução ao estudo bíblico (13 de agosto de 2009)

Declaração final do Sínodo dos bispos 2008 sobre a Palavra de Deus:
o rosto, a voz, a casa, e os caminhos da Palavra
Aos irmãos e irmãs, “paz, assim como caridade e fé, da parte de Deus Pai e de Jesus Cristo Senhor. Que a graça esteja com todos os que amam a Nosso Senhor Jesus Cristo com um amor incorruptível”. É com esta saudação intensa e apaixonada que São Paulo concluía a carta aos cristãos de Éfeso (6,23-24). É com essas mesmas palavras que nós, patriarcas sinodais reunidos em Roma pela XII Assembléia Geral Ordinária dos Bispos conduzidos pelo Santo Padre Bento XVI, abrimos a nossa mensagem dirigida ao imenso horizonte de todos os que, nas diversas regiões do mundo, seguem Cristo como discípulos e continuam a amá-lo com um amor incorruptível.
De novo, lhes propomos, a voz e a luz da Palavra de Deus, repetindo o antigo chamado: “Muito perto de ti, está a Palavra, está na tua boca e no teu coração a fim de que a ponha em prática” (Dt 30,14). E Deus próprio nos dirá: “Filho do Homem, todas as palavras que te digo, receba-as no teu coração, escuta com os ouvidos grandes abertos” (Ez 3,10). A todos, propomos agora uma viagem espiritual que faremos em 4 etapas e que, da eternidade e do infinito de Deus, nos conduzirá até dentro das nossas casas e nas ruas das nossas cidades.

I. A voz da Palavra: a Revelação

1. “O senhor falou convosco do meio do fogo; ouvíeis o som das suas palavras, mas não podíeis ver forma nenhuma, só uma voz!” (Dt 4,12). É Moisés que fala, evocando a experiência vivida por Israel, na dura solidão no deserto do Sinai. Aí, o Senhor apresentou-se não como imagem ou efígie, ou estátua parecida ao bezerro de ouro, mas como um “som de palavras”. É uma voz que entra em cena no início mesmo da criação, quando rompeu o silêncio do nada: “No início... Deus disse: Que a luz seja! E a luz foi... No início era o Verbo... e o Verbo era Deus... Tudo foi por Ele, e nada foi sem Ele” (Gn 1,1.3; Jo 1,1.3).
O criado não nasce de um combate entre deuses, tal como ensinava a antiga mitologia mesopotâmica, mas de uma palavra que vence o nada e cria o ser. O salmista canta: “Pela palavra do Senhor, os céus foram feitos, pelo sopro da sua boca toda a tropa armada deles... Ele fala, e isso acontece, ele comanda e isso existe” (Sl 33,6.9). E São Paulo repetirá: “Deus dá a vida aos mortos e chama do nada para a existência” (Ro 4,17). Temos assim uma primeira revelação “cósmica” que torna toda a criação semelhante a uma imensa página aberta diante da humanidade inteira, que, nela, possa ler a mensagem do Criador: “Os céus manifestam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos. Um dia faz declaração a outro dia, e uma noite mostra sabedoria a outra noite. Sem linguagem, sem fala, ouvem-se as suas vozes em toda a extensão da terra, e as suas palavras, até ao fim do mundo” (Sl 19,1-5).
2. A palavra divina é igualmente a origem da história humana. Homem e mulher, que são “à imagem e semelhança de Deus” (Gn 1,27) e que, de fato, têm neles a marca divina, podem entrar em diálogo com o Criador deles ou podem afastar-se dele, rejeitando-o pelo pecado. A palavra de Deus, então, salva e julga, penetra na trama da história tecida com a história de fatos e acontecimentos: “Vi, vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o grito dele... Sim, conheço as suas angústias. Desci para livrá-lo da mão dos egípcios e fazê-lo subir desta terra para uma terra boa e larga” (Ex 3,7-8). Há pois uma presença divina nos acontecimentos humanos que, por meio da ação do Senhor da história, estão inscritos num desígnio mais elevado de salvação, para que “todos os homens sejam salvos e venham ao conhecimento da verdade” (1 Tm 2,4).
3. A palavra divina, eficaz, criadora e salvadora é, pois, na origem do ser e da história, da criação e da redenção. O Senhor vem ao encontro da humanidade, proclamando: “Falei e fiz!” (Ez 37,14). Mas, há ainda uma etapa que a voz divina transpõe: é a da palavra escrita, a Grafè ou as Grafai, as Escrituras sagradas, como se diz para nós no Novo Testamento. Já, Moisés desceu de cima do Sinai, “com as duas tábuas do Testemunho na sua mão, tábuas escritas de ambas as bandas; de uma e de outra banda escritas estavam. E aquelas tábuas eram obra de Deus; também a escritura era a mesma escritura de Deus, esculpida nas tábuas” (Ex 32,15-16). E Moisés impôs a Israel de conservá-las e de copiar essas “tábuas do Testemunho”: “Tu escreverás sobre essas pedras todas as palavras desta Lei: exprimindo-as nitidamente” (Dt 27,8).
As Sagradas Escrituras são o “testemunho”, na forma escrita, da palavra divina, são o memorial canônico, histórico e literário que testifica o acontecimento da Revelação criadora e salvadora. A Palavra de Deus antecipa e supera a Bíblia, que fica portanto “inspirada por Deus” e que contem a Palavra divina eficaz (cf. 2 Tm 3,16). É por essa razão que nossa fé não tem no centro dela unicamente um livro, mas a história da salvação e, como veremos, uma Pessoa, Jesus Cristo, Palavra de Deus feita carne, homem e história. É justamente porque o horizonte da Palavra divina se estende além da Escritura que se torna necessário a constante presença do Espírito Santo que “conduz à verdade inteira” (Jo 16,13) aquele que lê a Bíblia. Tal é a grande Tradição, presença eficaz do “Espírito de verdade” na Igreja, guarda das Sagradas Escrituras, autenticamente interpretadas pelo Magistério eclesial. Com a Tradição, chegamos à compreensão, à interpretação, à comunicação e ao testemunho da Palavra de Deus. São Paulo, próprio, proclamando o primeiro Credo cristão, afirmará “transmitir” o que recebeu da “Tradição” (1 Cor 15,3-5).

II. O rosto da Palavra: Jesus Cristo.

4. No original grego, há 3 palavras fundamentais: Lógos sarx eghéneto, “O Verbo/Palavra se fez carne”. Eis aqui o ponto mais alto, não só desta jóia poética e teológica que é o Prólogo do Evangelho de João (1,14), mas também do centro da fé cristã. A Palavra eterna e divina entra no espaço e no tempo, toma rosto e assume a identidade humana, ao ponto que é possível aproximar-se diretamente pedindo, como o fez o grupo dos gregos presentes em Jerusalém: “Queremos ver Jesus” (Jo 12,20-21). As palavras sem rosto não são perfeitas, porque não cumprem em plenitude o encontro, como o lembrava Jó, chegado ao termo do drama do seu itinerário de busca: “Conhecia-te só de ouvido, mas agora viram-te meus olhos” (Jó 42,5).
O Cristo é “o Verbo que é com Deus e que é Deus”, ele é “a imagem do Deus invisível, o Primogênito de toda criatura” (Col 1,15); mas é também Jesus de Nazaré que percorre as estradas de uma província na margem do império romano, que fala um idioma local, que revela as características de um povo, o povo judeu, e da cultura dele. O Jesus Cristo real é, pois, carne fraca e mortal, é história e humanidade, mas é também glória, divindade, mistério: Aquele que nos revelou o Deus que ninguém jamais tinha visto (cf. Jo 1,18). E Filho de Deus, fica até mesmo neste cadáver depositado no sepulcro, e a ressurreição é atestação viva e eficaz.
5. Ora, a tradição cristã muitas vezes colocou em paralelo a Palavra divina que se faz carne com esta Palavra que se faz livro. É o que transparece já no Credo quando professamos que o Filho de Deus “foi concebido pelo Espírito Santo, e nasceu da Virgem Maria”, e que confessamos igualmente a fé neste mesmo “Espírito Santo que falou pelos profetas”. O Concílio Vaticano II recolhe esta antiga tradição na qual “o corpo do Filho é a Escritura que nos é transmitida” – como o afirma Santo Ambrósio (In Lucam VI,33) – e diz nitidamente: “As palavras de Deus com efeito, expressas por línguas humanas, tornaram-se intimamente semelhantes à linguagem humana, como outrora o Verbo do eterno Pai se assemelhou aos homens tomando a carne da fraqueza humana” (DV 13).
A Bíblia é, de fato, ela mesma feita com “carne”, “letra”; expressa-se com idiomas particulares, com formas literárias e históricas, com conceitos ligados à cultura ântica; guarda a memória de acontecimentos muitas vezes trágicos, as páginas são muitas vezes atravessadas de sangue e violência; no seu interior, ressoa a risada da humanidade, e correm lágrimas, assim como se levanta a oração dos infelizes e a alegria dos namorados. Esta dimensão “carnal” torna necessária uma análise histórica e literária, que se atualiza por meio de vários métodos e aproximações oferecidas pela exegese bíblica. Qualquer leitor das Sagradas Escrituras, mesmo o mais simples, deve ter um certo conhecimento do texto sagrado, lembrando-se que a Palavra é revestida de palavras concretas às quais se dobra e se adapta para ser audível e compreensível pela humanidade.
É uma tarefa necessária: se se exclui, se pode facilmente cair no fundamentalismo que, no concreto, nega a encarnação da Palavra divina na história, e não reconhece que esta Palavra exprime-se na Bíblia segundo um idioma humano, que deve ser decifrado, estudado e compreendido, e ignora que a inspiração divina não cancelou a identidade histórica e a pessoalidade própria dos autores humanos. Mas a Bíblia é também Verbo eterno e divino, e é por isso que ela exige uma outra compreensão, dada pelo Espírito Santo que revela a dimensão transcendente da palavra divina, presente nas palavras humanas.
6. Daí a necessidade da “Tradição viva da Igreja inteira” (DV 12) e da fé para entender de maneira unificada e plena as Sagradas Escrituras. Se se volta à “letra” só, a Bíblia fica unicamente um solene documento do passado, um nobre testemunho ético e cultural. Se, de um outro lado, se exclui a encarnação, pode-se cair no equívoco fundamentalista ou num vago espiritualismo ou psicologismo. O conhecimento exegético deve, por consequência, inserir-se de maneira indissolúvel na tradição exegética para que não seja quebrada a unidade divina e humana de Jesus Cristo e das Escrituras.
Nesta harmonia reencontrada, o rosto de Cristo resplandecerá em toda a sua plenitude e nos ajudará a descobrir uma outra unidade, a bem mais profunda e íntima das Sagradas Escrituras, o ser delas, formadas com certeza com 73 livros, mas inseridos num só “Cânon”, num só diálogo entre Deus e a humanidade, num desígnio único de salvação. “Muitas vezes e de modos diversos falou Deus, outrora, aos Pais pelos profetas; agora, nestes dias que são os últimos, falou-nos por meio do Filho” (He 1,1-2). Cristo projeta, deste modo, sua luz retrospectivamente sobre toda a trama da história da salvação e manifesta a coerência, o significado e o sentido dela.
Ele é o selo, “o alfa e o ômega” (Ap 1,8) de um diálogo, entre Deus e as criaturas, prolongado no tempo e atestado na Bíblia. É à luz deste selo final que se recebe “o significado inteiro” das palavras de Moisés e dos profetas, segundo o que disse Jesus próprio, numa tarde de um dia de Primavera, enquanto caminhava de Jerusalém para a povoação de Emaús, dialogando com Cléofas e o amigo dele, e que interpretou-lhes “em todas as Escrituras o que a Ele dizia respeito” (Lc 24,27).
É precisamente porque, no centro da Revelação, há a Palavra divina que se tornou rosto, que a perspetiva última do conhecimento da Bíblia é o encontro com Cristo e não “há uma decisão ética ou uma grande idéia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (Deus Caritas Est, 1).

III. A casa da Palavra: a Igreja

Como a sabedoria divina do Antigo Testamento construiu a sua casa na cidade dos homens e das mulheres colocando-a sobre sete colunas (cf. Pr 9,1), assim a Palavra de Deus tem a sua casa no Novo Testamento: é a Igreja que tem o seu modelo na comunidade-mãe de Jerusalém, a Igreja fundada sobre Pedro e sobre os apóstolos e que, hoje, pelos bispos em comunhão com o sucessor de Pedro, continua sendo guarda, anunciadora e interprete da Palavra (cf. LG 13). Lucas, nos Atos dos Apóstolos (2,42), designa a arquitetura fundada sobre 4 colunas ideais: “Eles mostravam-se assíduos ao ensinamento dos apóstolos, à comunhão fraterna, à fração do pão e às orações”.
7 É, primeiro, na didacè apostólica, quer dizer a predicação da Palavra de Deus. O apóstolo Paulo, nesta intenção, nos adverte: “A fé vem da escuta e a escuta é pela palavra de Cristo” (Ro 10,17). Da Igreja chega a voz do herói que propõe para todos o kerigmo, quer dizer o anúncio primeiro e fundamental que Jesus próprio proclamou no início do seu ministério público: “Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,15). Os apóstolos anunciam a inauguração do Reino de Deus, e, pois, a intervenção decisiva de Deus na história humana, proclamando a morte e ressurreição de Cristo: “Pois, não há debaixo do céu, outro nome dado aos homens pelo qual devamos ser salvos” (At 4,12). O cristão testemunha esta esperança com “mansidão e respeito”, pronto para se implicar, e mesmo para ser levado pela tempestade da rejeição e da perseguição, consciente que “seria melhor sofrer praticando o bem do que praticando o mal” (1 Pd 3,16-17).
Na Igreja, ressoa depois a catequese, destinada a aprofundar no cristão “a inteligência do mistério de Cristo à luz da Palavra, a fim de que o homem todo inteiro seja impregnado por ela” (João-Paulo II, Catechesi tradendae, 20). Mas o ponto mais alto da pregação está na homilia que, hoje ainda é, para numerosos cristãos, o momento capital do encontro com a Palavra de Deus. Neste ato, o ministro deveria transformar-se igualmente em profeta. Pois, com uma linguagem nítida, incisivo e substancial, deve com autoridade “anunciar as obras maravilhosas de Deus na história da salvação” (SC 35) que são ofertas, antes de tudo, pelo meio de uma leitura clara, viva do texto bíblico proposto pela liturgia. E ele deve igualmente atualizar essas obras segundo os tempos e momentos vividos por aqueles que escutam, e suscitar no coração dos auditores o pedido da conversão e do compromisso vital: “O que devemos fazer?” (At 2,37).
Anúncio, catequese e homilia supõem pois leitura e compreensão, explicação e interpretação: uma implicação do espírito e do coração. Assim, na pregação, se cumpre um duplo movimento. O primeiro vai para as raízes dos textos sagrados, dos acontecimentos, das narrações que geraram a história da salvação, para os compreender na significação deles, na mensagem deles. O segundo movimento volta para o presente, para o vivido daquele que escuta e que lê, sempre à luz de Cristo, fio luminoso que une as Escrituras. Este duplo movimento, Jesus próprio o fez, como já o evocamos, no caminho conduzindo de Jerusalém para Emaús, na companhia de dois dentre os discípulos deles. É também o que fará o diácono Filipe na estrada que vai de Jerusalém para Gaza, quando iniciará o diálogo emblemático com o funcionário etíope: “Entendes o que estás lendo?... Como o poderia, se alguém não me guiar?” (At 8,31-31). O fim será o encontro total com Cristo no sacramento. Assim se apresenta a segunda coluna que segura a Igreja, casa da Palavra divina.
8. Chegamos ao partir o pão. A Ceia de Emaús (cf. Lc 24,13-35), mais uma vez exemplaria, acontece quando, cada dia, no seio das nossas igrejas, na mesa, a fração do pão eucarístico sucede à homilia de Jesus acerca de Moisés e dos profetas. É aí o momento do diálogo íntimo de Deus com o seu povo; é o ato da nova Aliança selada no sangue de Cristo (cf. Lc 22,20); é a suprema obra do Verbo que se oferece em comida pelo seu corpo imolado; é a fonte e a cima da vida e da missão da Igreja. A narração evangélica da Última Ceia, memorial do sacrifício de Cristo, se torna acontecimento e sacramento quando é proclamada na celebração eucarística, na invocação do Espírito Santo. É por esta razão que o Concílio Vaticano II, num trecho particularmente denso, declarava: “A Igreja venerou sempre as divinas Escrituras como venera o próprio Corpo do Senhor, não deixando jamais, sobretudo na sagrada Liturgia, de tomar e distribuir aos fiéis o pão da vida, quer da mesa da palavra de Deus quer da do Corpo de Cristo” (DV 21). Convém pois, colocar de novo no centro da vida cristã “a liturgia da palavra e a liturgia eucarística, tão intimamente ligadas entre si que formam um só ato de culto” (SC 56).
9. O terceiro pilar do edifício espiritual da Igreja, casa da Palavra, é constituído pelas orações, compostas – como o lembrava São Paulo – de “salmos, hinos, cânticos inspirados” (Col 3,16). A Liturgia das Horas ocupa um lugar privilegiado, oração por excelência da Igreja, destinada a ritmar os dias e os tempos do ano cristão, oferecendo com o Livro dos Salmos, a comida cotidiana espiritual ao fiel. Além da liturgia das Horas e das celebrações comunitárias da Palavra, a tradição introduziu a prática da Lectio Divina, leitura orante no Espírito Santo, capaz de abrir o fiel ao tesouro da Palavra de Deus, e, assim, de criar o encontro com Cristo, Palavra divina viva. Esta Lectio Divina abre-se com a leitura (lectio) do texto que provoca uma questão em relação com o conhecimento autêntico do conteúdo real: o que diz o texto bíblico em si? Segue a meditação (meditatio) que faz a pergunta seguinte: o que me diz o texto bíblico? Se chega assim à oração (oratio) que supõe um outro pedido: o que dizemos ao Senhor em resposta à Palavra dele? E se acaba pela contemplação (contemplatio), durante a qual assumimos como um dom de Deus o próprio olhar dele do julgamento que ele dirije sobre a realidade, e nós nos perguntamos: a qual conversão do espírito, do coração e da vida, o Senhor está me chamando?
Em relação ao “leitor orante” da Palavra de Deus, temos o ideal da figura de Maria, Mãe do senhor, que “conservava cuidadosamente todos esses acontecimentos e os meditava em seu coração” (Lc 2,19; cf. 2,51), quer dizer – tal como o diz o texto original em grego – achando o laço profundo que une os acontecimentos, os atos e as coisas, aparentemente distintos, no grande desígnio de Deus. Podemos apresentar também aos fiéis que lêem a Bíblia, a atitude de Maria, irmã de Marta, que, sentada aos pés do Senhor, à escuta da Palavra dele, impedindo que qualquer agitação exterior absorva totalmente a sua alma, até ocupar o espaço livre para “a melhor parte” que não deve lhe ser tirada (cf. Lc 10,38-42).
10. Aqui estamos em fim diante da última coluna que sustenta a Igreja, casa da Palavra: a koinonia, a comunhão fraterna, outro nome da agapé, quer dizer do amor cristão. Como Jesus o lembrava, para se tornar irmãos e irmãs dele, é preciso ser dos que “escutam a palavra de Deus e a põem em prática” (Lc 8,21). Escutar autenticamente, é: obedecer e agir; fazer nascer na vida a justiça e o amor; oferecer na existência e na sociedade, um testemunho conforme ao chamado dos profetas – que uniam sem cessar palavra de Deus e vida, fé e retidão, culto e compromisso social. É o que Jesus repetiu tantas vezes, depois desta famosa advertência do sermão da montanha: “Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’, entrará no Reino dos Céus” (Mt 7,21). Esta frase ressoa com a palavra divina proposta a Isaías: “Este povo se chega junto a mim com palavras e me glorifica com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” (29,13). Essas advertências concernem também as Igrejas quando não são fiéis à escuta obediente da Palavra de Deus.
A Palavra de Deus deve pois ser já visível e legível no rosto e nas mãos daquele que crê, como o sugeria São Gregório Magno que via em São Bento, e nos outros grandes homens de Deus, testemunhas da comunhão com Deus e com os irmãos, a Palavra de Deus que se tornou vida. O homem justo e fiel explica não só as Escrituras, mas as apresenta diante de todos como realidade viva e vivida. É por isso que viva lectio, vita bonorum : a vida dos homens bons é uma leitura / Lição viva da palavra divina. São João Crisóstomo já tinha observado que os apóstolos desceram do Monte da Galiléia, onde tinham encontrado o Ressuscitado, sem nenhuma tábua de pedra escrita, como foi para Moisés: como se, a partir daí, a própria vida deles tornou-se Evangelho vivo.
Na casa da Palavra, encontramos também os irmãos e as irmãs das outras Igrejas e comunidades eclesiais que, além das separações existentes, partilham a veneração e o amor à Palavra de Deus, príncipe e fonte primeira e real de unidade, mesmo que não seja ainda completa. Este laço deve ser sempre reforçado com traduções bíblicas em comum, difusão do texto sagrado, oração bíblica ecumênica, diálogo exegético, estudo e confronte das diferentes interpretações das Sagradas Escrituras, partilha sobre os valores das diversas tradições espirituais, o anúncio e o testemunho em comum da Palavra de Deus num mundo secularizado.

IV. Os caminhos da Palavra: a Missão

“De Sião vem a Lei e de Jerusalém a palavra do Senhor” (Is 2,3). A Palavra de Deus personalizada “sai” da casa, do templo, e caminha nas estradas do mundo a fim de encontrar a grande peregrinação que os povos da terra iniciaram em busca da verdade, da justiça e da paz. E, de fato, na cidade moderna e secularizada, nas praças e nas ruas – onde parece dominar a incredulidade e a indiferença, onde o mal parece prevalecer sobre o bem, deixando acreditar na vitória da Babilônia sobre Jerusalém – há como um pequenino sopro escondido, uma esperança em germe, um tremente de espera. Tal como o lemos no livro de Amós: “Eis que virão dias em que enviarei fome à terra, não fome de pão, nem sede de água, mas de ouvir a palavra do Senhor” (Am 8,11). É a esta fome que quer responder a missão evangelizadora da Igreja.
Cristo ressuscitado, aos apóstolos ainda hesitantes, lança este chamado para sair dos confins protegidos do horizonte deles: “Ide e fazei que todas as nações se tornem discípulos... e ensinando-as a observar tudo quanto vos ordenei” (Mt 28,19-20). Toda a Bíblia é atravessada de chamados para “não se calar”, para “gritar com força”, para “anunciar a palavra seja no tempo certo ou não”, para se tornar vigias cortando o silêncio da indiferença. As estradas que se abrem para nós hoje, não são só aquelas onde andava São Paulo ou os primeiros evangelizadores e, depois deles, todos os missionários que caminham na direção dos povos ou das terras distantes.
11. A comunicação, nos nossos dias, estende-se numa rede que envolve o globo na sua totalidade. E o chamado de Cristo adquire uma nova ressonância: “O que lhes digo às escuras, dizei-o à luz do dia: o que vos é dito aos ouvidos, proclamai-o sobre os telhados” (Mt 10,27). Se a Palavra sagrada deve, com certeza, conservar a sua primeira visibilidade e difusão, pelo meio do texto impresso, por traduções feitas na grande diversidade dos idiomas da nossa planeta, a voz da palavra divina deve igualmente ressoar por meio da radio, da rede Internet de difusão virtual, dos CD, dos D.V.D., os “ipods” (MP3) e outros; ela deve aparecer nas telas da televisão e do cinema, na imprensa, no seio dos acontecimentos culturais e sociais.
Esta nova forma de comunicação, em relação com o jeito tradicional, adotou a sua própria gramática de expressão específica e temos de ser equipados, não só tecnicamente, mas culturalmente, para este desafio. Numa época dominada pela imagem, veiculada por este meio predominante de comunicação que é a televisão, o modelo privilegiado por Cristo é ainda hoje significativo e sugestivo: recorria ao símbolo, à narração, ao exemplo, à experiência cotidiana, à parábola. “Disse-lhes muitas coisas em parábolas... e sem parábolas nada lhes falava” (Mt 13,3.34). No anúncio do Reino de Deus, as palavras de Jesus não escapavam fora da capacidade de entendimento deles, por causa da utilização de uma linguagem vaga, abstrata e etérea; pelo contrário, conquistava os ouvintes falando a partir do chão sobre o qual os pés deles estavam plantados para os conduzir do cotidiano à revelação do Reino dos Céus. Significativo, portanto, esta ceia que evoca São João: “Alguns queriam prendê-lo, mas ninguém lhe pôs a mão. Os guardas, então, voltaram aos chefes dos sacerdotes e aos fariseus e estes lhes perguntaram: ‘Por que não o trouxeste?’ Os guardas responderam: ‘Jamais um homem falou assim!’” (Jo 7,44-46).
12. Cristo caminha ao longo das estradas das nossas cidades e para na entrada das nossas casas: “Eis que estou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele comigo” (Ap 3,20). A família, cujas paredes domésticas contêm as alegrias e os dramas, é um espaço fundamental no qual deve entrar a Palavra de Deus. Toda a Bíblia está marcada com pequenas e grandes histórias familiares e o salmista pinta com vivacidade o quadra sereno de um pai sentado à mesa, cercado por sua esposa, semelhante a uma videira fecunda, e dos seus filhos, “plantas de oliveira” (Sl 128,3). Os primeiros cristãos celebravam também a liturgia no seio de uma casa familiar, tal como Israel confiava à família a celebração da Páscoa (cf. Ex 12,21-27). A transmissão da Palavra de Deus se faz justamente através das gerações, o que torna os pais a serem “os primeiros arautos da fé” (LG 11). O Salmista lembrava também que “O que nós ouvimos e conhecemos, o que nos contaram nossos pais, não o esconderemos a seus filhos; nós o contaremos à geração seguinte: os louvores do Senhor e seu poder, e as maravilhas que realizou; ...para que a geração seguinte os conhecesse, os filhos que nasceriam” (Sl 78,3-4.6).
Então, cada lar deverá possuir uma Bíblia, a guardar cuidadosamente, a ler e rezar com ela; a família deverá propor formas e modelos de educação orante, catequética e didática sobre o uso das Escrituras, a fim de que “jovens e também as donzelas, os velhos com as crianças!” (Sl 148,12) escutem, compreendam, louvem e vivam a Palavra de Deus. Em particular, as novas gerações, as crianças e os jovens, terão de ser destinatários de uma pedagogia apropriada e específica que conduz os a sentir fascinação pela figura de Cristo, abrindo as portas da inteligência e do coração, incluído pelo encontro e o testemunho autêntico de adultos, da influência positiva de amigos e da grande companhia da comunidade eclesial.
13. Jesus, na parábola do semeador, nos lembra que há terrenos áridos, pedregosos, sufocados pelos espinhos (cf. Mt 13,3-7). Aquele que se aventura nas estradas do mundo descobre igualmente as ralés, os focos de sofrimentos e pobrezas, de humilhações e opressões, de exclusões e misérias, de doenças físicas, psíquicas e de solidões. Muitas vezes, as pedras do caminho estão ensangüentadas pelas guerras e violências, e, nos palácios do poder, a corrupção concorre com a injustiça. Levanta-se o grito dos perseguidos por causa da fidelidade à consciência e à fé deles. Há aquele que, encontrado-se numa crise existencial, ou cuja alma se encontra privada de um sentido que dê significação e valor à vida em sim mesmo. Semelhantes à “apenas à sombra do homem que caminha, apenas sopro que se perde” (Sl 39,7), muitos percebem mesmo o silêncio de Deus pesando sobre eles, a aparente ausência e indiferença. “Até quando me esquecerás, Senhor? Para sempre? Até quando esconderás de mim a tua face?” (Sl 13,2). E, por fim, surge à frente de cada um o mistério da morte.
A Bíblia, que propõe precisamente uma fé histórica e encarnada, representa sem cessar este imenso grito de dor que sobe da terra para o céu. Basta pensar nas páginas marcadas pela violência e a opressão, no grito forte e incessante de Jó, nas súplicas veementes dos salmos, na crise interior subtil que percorre a alma de Coélet, nas vigorosas denúncias proféticas contra as injustiças sociais. Além disso, é sem circunstâncias atenuantes que é condenado o pecado radical, que aparece em todo o seu poder devastador desde o início da humanidade no texto fundamental de Gênesis (capítulo 3). De fato, o “mistério da iniqüidade” está presente e age na história, mas é desvendado pela Palavra de Deus que promete, em Cristo, a vitória do bem sobre o mal.
Mas, nas Escrituras, o que domina sobretudo, é a figura de Cristo que inicia o seu ministério público com um anúncio de esperança para os últimos da terra: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou pela unção para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc 4,18-19). As suas mãos tocam várias vezes as carnes doentes ou infectadas, as suas palavras proclamam a justiça, reanimam os infelizes, oferecem o perdão aos pecadores. No fim, ele próprio se aproxima do nível mais baixo “se despojou” da sua glória, “tomando a forma de escravo, tornando-se semelhante aos homens e reconhecido em seu aspecto como um homem, abaixou-se, tornando-se obediente até a morte, e morte sobre uma cruz!” (Fil 2,7-8).
Assim, Jesus provou o medo de morrer (“Meu Pai, se é possível, afaste de mim este cálice!” Mt 26,39), ele faz a experiência da solidão pelo abandono e pela traição de seus amigos, ele penetra na escuridão da mais cruel dor física com a crucifixão e chega até as trevas do silêncio do Pai (“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” Mc 15,34), atingindo o abismo último de qualquer homem, o da morte (“dando um grande grito, expirou” Mc 15,37). É verdadeiramente para ele que se pode aplicar a definição que Isaías reserva ao Servidor do Senhor: “Homem sujeito a dor, familiarizado com o sofrimento” (Is 53,3).
Portanto, mesmo neste momento extremo, não cessa de ser Filho de Deus: na sua solidariedade de amor e pelo sacrifício de si mesmo, deposita, no limite e no mal da humanidade uma semente de divindade, quer dizer um princípio de libertação e de salvação; pelo dom de si mesmo que ele nos faz, ele esclarece pela redenção a dor e a morte que assumiu e viveu, e abre, para nós também, a madrugada da ressurreição. O cristão tem, doravante, a missão de anunciar esta Palavra divina de esperança pela partilha com os pobres e os sofredores, pelo testemunho da sua fé no Reino de verdade e de vida, de santidade e de graça, de justiça, de amor e de paz, pela sua proximidade amorosa que nem julga, nem condena, mas que apóia, ilumina, revigora e perdoa, no rasto das palavras de Cristo: “Vinde a mim todos o que estão cansados sob o peso do vosso fardo e eu vos darei descanso” (Mt 11,28).
14. Nas estradas do mundo, a Palavra divina gera para nós cristãos um encontro intenso com o povo judeu ao qual somos intimamente ligados pelo reconhecimento e o amor em comum das Escrituras do Antigo Testamento e porque de Israel, “descende Cristo segundo a carne” (Rm 9,5). Todas as sagradas páginas hebraicas esclarecem o mistério de Deus e do homem, revelam tesouros de reflexão e de moral, traçam o longo itinerário da história da salvação até ao seu pleno cumprimento, ilustram com vigor a encarnação da palavra divina nos acontecimentos humanos. Elas nos permitem compreender na sua plenitude a figura de Cristo que disse: “Não penseis que vim revogar a Lei e os Profetas: não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento” (Mt 5,17), constituem caminhos de diálogo com o povo da eleição que recebeu de Deus a “adoção filial, a glória, as alianças, a legislação, o culto, as promessas” (Rm 9,4), e enriquecem a nossa interpretação das Sagradas Escrituras com os recursos fecundos da tradição exegética judaica.
“Bendito meu povo, o Egito e a Assíria, obra das minhas mãos, e Israel, minha herança” (Is 19,25). O Senhor estende pois o manto protetor da sua benção sobre todos os povos da terra, querendo que “todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (1 Tm 2,4). Nós também, cristãos, nas estradas do mundo, somos convidados, sem cair no sincretismo que confunde e humilha a identidade espiritual própria, a dialogar respeitosamente com os homens e mulheres de outras religiões que escutam e praticam fielmente as indicações dos livros sagrados, a começar pelo Islã que, na sua tradição, acolhe inumeráveis figuras, símbolos e temas bíblicos e que nos oferece o testemunho de uma fé sincera no Deus único, “compassivo e misericordioso”, Criador de todo o ser, juízo da humanidade.
O cristão encontra, além do mais, sintonias comuns com as grandes tradições religiosas do Oriente que nos ensinam em seus textos sagrados o respeito à vida, a contemplação, o silêncio, a simplicidade, a renúncia, como acontece no budismo. Ou mesmo, no hinduísmo, os quais exaltam o sentido do sagrado, o sacrifício, a peregrinação, o jejum, os símbolos sagrados. Ou também, como no confucionismo, ensinam a sabedoria e os valores familiares e sociais. Também queremos prestar nossa cordial atenção às religiões tradicionais, com seus valores espirituais expressos nos ritos e as culturas orais, e estabelecer com elas um diálogo respeitoso. Temos também que trabalhar com os que não crêem em Deus mas se esforçam em “praticar o direito, gostar do amor e caminhar humildemente” (Mi 6,8), por um mundo mais justo e pacífico e oferecer em diálogo o nosso testemunho autêntico da Palavra de Deus que pode revelar a eles novos e mais altos horizontes de verdade e de amor.
15. Em sua Carta aos artistas (1999), João Paulo II lembrava que “ a Sagrada Escritura se tornou uma espécie de imenso vocabulário” (P. Claudel) e de “ Atlas icnográfico” (M.Chagall) do qual se nutriram a cultura e a arte cristã” (n. 5). Goethe estava convencido de que o Evangelho fora a “língua materna da Europa”. A Bíblia, como se costuma dizer, é “ o grande código” da cultura universal: os artistas, idealmente, impregnaram seus pincéis em esse alfabeto pintado de histórias, símbolos, imagens que são as páginas bíblicas; os músicos teceram sua harmonias em torno dos textos sagrados, especialmente os salmos; os escritores durante séculos retomaram essas antigas narrações que se tornavam parábolas existenciais; os poetas fizeram indagações sobre mistérios do espírito, o infinito, o mal, o amor, a morte e a vida, recolhendo com freqüência o clamor poético que animava as páginas bíblicas; os pensadores, os homens de ciência e a própria sociedade freqüentemente tinham como referência, ainda que fosse por oposição, os conceitos espirituais e éticos (pensemos no Decálogo) da Palavra de Deus. Mesmo quando a imagem ou a idéia presente nas Escrituras se deformava, eles reconheciam que era imprescindível e constitutiva de nossa civilização.
Por isso, a Bíblia – que também ensinava a via da pulcritude, ou seja, o caminho da beleza para compreender e chegar a Deus (“tocai para Deus com destreza!”, nos convida o Salmo 47, 48) - não só é necessária para aquele que crê, mas para todos, para descobrir novamente os significados autênticos das várias expressões culturais e, sobretudo, para encontrar novamente nossa identidade histórica, civil, humana e espiritual. Nela se encontra a raiz de nossa grandeza e mediante ela podemos apresentar-nos com um nobre patrimônio às demais civilizações e culturas, sem nenhum complexo de inferioridade. Portanto, todos deveriam conhecer e estudar a Bíblia, sob este extraordinário perfil de beleza e fecundidade humana e cultural.
Todavia, a Palavra de Deus – para usar uma significativa imagem paulina – “não está acorrentada” (2 Tm 2, 9) a uma cultura; pelo contrário, deseja atravessar as fronteiras e, precisamente o Apóstolo foi um artífice excepcional de inculturação da mensagem bíblica dentro de novas coordenadas culturais. É o que a Igreja está sendo chamada a fazer também hoje, mediante um processo delicado, mas necessário, a qual recebeu um forte impulso do magistério do Papa Bento XVI. Deve fazer com que a Palavra de Deus entre na multiplicidade das culturas e expresse-as segundo suas linguagens, suas concepções, seus símbolos e suas tradições religiosas. No entanto, deve ser capaz de guardar a substância de seus conteúdos, vigiando e evitando o risco de degeneração.
A Igreja deve fazer brilhar os valores que a Palavra de Deus oferece a outras culturas, de maneira que possam chegar a ser purificadas e fecundadas por ela. Como disse João Paulo II ao episcopado do Quênia durante sua viagem à África em 1980, “a inculturação será realmente um reflexo da encarnação do Verbo, quando uma cultura transformada e regenerada pelo Evangelho, porque em sua própria tradição expressões originais de vida, de celebração e de pensamento cristão”.

Conclusâo

“A voz do céu que eu tinha ouvido tornou então a falar-me: “Vai, toma o livrinho aberto da mão do Anjo que está em pé sobre o mar e sobre a terra”. Fui, pois, ao Anjo e lhe pedi que me entregasse o livrinho. Ele então me disse: “Toma-o e devora-o; ele te amargará o estômago, mas em tua boca será doce como mel”. Tomei o livrinho da mão do Anjo e o devorei: na boca era doce como mel; quando o engoli, porém, meu estômago se tornou amargo. Disseram-me então: “É necessário que continues ainda a profetizar contra muitos povos, nações, línguas e reis” (Ap 10,8-11).
Irmãos e irmãs de todo o mundo, acolhamos também este convite, aproximemo-nos da mesa da Palavra de Deus, para alimentar-nos e viver “não só de pão, mas [...] de toda a Palavra da boca de Deus” (Dt 8,3; Mt 4,4). A Sagrada Escritura – como afirmava uma grande figura da cultura cristã – “providênciou passagens adequadas para consolar todas as condições humanas e passagens adequadas para atemorizar em todas as condições” (B.Pascal, Pensieri, n. 532 ed. Brunschvicg).
A Palavra de Deus, de fato, é “mais doce do que o mel, do que o mel que escorre dos favos”(Sl 19,11), “é lâmpada para meus passos, luz para meu caminho” (Sl 119,105), mas também “ como fogo e como uma martelo que arrebenta a rocha” (Jr 23,29). É como uma chuva que rega a terra, a fecunda e a faz germinar, fazendo florescer assim a aridez dos nossos desertos espirituais (cf. Is 55,10-11). “A Palavra de Deus é viva, eficaz e mais penetrante do que qualquer espada de dois gumes; penetra até dividir alma e espírito, junturas e medulas. Ela julga as disposições e as intenções do coração” (He 4,12).
Nosso olhar se dirige com afeto a todos os estudiosos, aos catequistas e outros servidores da Palavra de Deus para expressar-lhes nossa gratidão mais intensa e cordial por seu precioso e importante ministério. Dirigimo-nos também a nossos irmãos e irmãs perseguidos ou assassinados por causa da Palavra de Deus e o testemunho que dão ao Senhor Jesus (cf. Ap 6,9): como testemunhos e mártires nos relatam “ a força da palavra” (Rm 1,16), origem de sua fé, esperança e seu amor por Deus e pelos homens.
Façamos agora silêncio para escutar com eficácia a Palavra do Senhor e mantenhamos o silêncio logo após a escuta, porque continuará habitando, vivendo em nós e falando conosco. Façamos ressoar no começo do nosso dia, para que Deus tenha a primeira palavra e deixemos que ela ressoe dentro de nós pela noite, para que a última palavra seja de Deus.
Queridos irmãos e irmãs, “Todos os que estão comigo te saúdam. Saúda os que nos amam na fé. A graça esteja com todos vós.” (Tt 3,15).

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